Dos estúdios da People Can Fly, criadores de Painkiller e Bulletstorm, chega-nos Outriders, um shooter carregado de elementos RPG, e talvez uma pitada de inspiração em sagas como Destiny. Num ano com menos novidades do que é costume, Outriders apresenta-nos uma jogabilidade na terceira-pessoa, modos a solo e em formato cooperativo, numa fórmula que parece ter tudo para ser popular. Mas será que isso chega para ser um sucesso? Para percebermos melhor este jogo, é importante conhecermos um pouco melhor os seus criadores, e compreender o caminho que levou a esta, por vezes confusa, fusão de géneros.
A People Can Fly pode não aparentar ser um nome reconhecido no universo dos videojogos, mas não é de certo por falta de experiência ou provas dadas. O estúdio polaco começou a dar nas vistas em 2004, com o lançamento de Painkiller, um shooter de ritmo rápido que na sua época arrecadou boas notas da crítica, mas sem impressionar demasiado. Em 2011 o estúdio apresentou Bulletstorm, de novo um shooter frenético, mas que desta feita destacou-se mais pela sua violência explicita e sentido de humor carregado, do que propriamente pela sua narrativa ou visuais. Publicado pela EA, e resultado de inspirações em sagas como Pulp fiction, Burnout, Duke Nukem e a série Firefly, Bulletstorm recebeu boas notas da crítica, mas foi um falhanço de vendas, atingindo apenas um milhão de copias vendidas até 2013.
Não menos importante, é o facto da Epic Games, a criadora do Unreal Engine, ter detido a maioria das ações da People Can Fly desde 2007, tendo em 2012 adquirido a totalidade do estúdio. Da compra resultou a alteração do nome do estúdio para Epic Games Poland, e a participação no desenvolvimento de Gears of War: Judgment e de Fortnite: Save the World, juntamente com a restante equipa da Epic Games. No entanto, em 2015 o estúdio voltou a mudar de rumo, separando-se completamente da Epic, e regressando ao seu nome original, People Can Fly. Desde então, a equipa cresceu de cerca de 40 funcionários para mais de 300, graças a uma parceria com a Square Enix, para a publicação de Outriders.
Outriders
Se por um lado podemos destacar a experiência da People Can Fly (Bulletstorm) no género de tiro, a verdade é que Outriders acaba por destacar-se por ser um curioso caso de fusão de géneros. Outriders não é um atirador puro, uma vez que recolhe a sua maior inspiração nos grandes jogos de ação RPG, como Diablo ou Path of Exile, onde as habilidades, combos e builds são tão importantes quanto as armas. No entanto, este é também um atirador cooperativo com foco na pilhagem de loot, mais ao estilo de Destiny, Borderlands e The Division. Como se isto não bastasse, Outriders não quer ser apenas mais um jogo de estilo ‘always-online’ e, embora exija uma conexão à Internet, dá grande valor a uma campanha de história para um jogador (single-player) e cooperativa (Co-op), que inclui um mundo implacável cheio de personagens cinzentas e verdades difíceis de engolir.
Nos primeiros dias de jogo, os servidores de login de Outriders mostraram-se incapazes de suportar todos os novos jogadores, impedindo a progressão na campanha para milhares de jogadores em todo o mundo. Felizmente a situação foi resolvida pela equipa de desenvolvimento, mas não deixa de ser uma situação evitável, principalmente porque o jogo vinha de uma fase de testes aberta (Open Beta), onde os mesmos problemas já se tinham verificado. Além disso, exigir uma conexão constante aos servidores da empresa, apenas para jogar de forma single-player, parece-nos algo exagerado.
Um RPG de Tiro
Quando corremos pelo campo de batalha com a nossa classe Trickster (um assassino corpo a corpo), somos capazes de congelar os oponentes numa bolha de tempo, para depois destruir a carne dos seus ossos com um golpe mágico. Se preferirmos, podemos teletransportar-nos para as costas deles. Nesta altura, sentimos que estamos dentro de um Diablo na terceira-pessoa, com uma jogabilidade idêntica, mas visuais totalmente diferentes. As habilidades mágicas recarregam tão rapidamente que podemos destruir hordas enormes de inimigos, acabando por ser a forma ideal de combater, já que a nossa arma acaba por ser menos eficaz (mais lenta). Apesar da inspiração em Destiny, aqui não temos de guardar as nossas habilidades para o momento certo.
O uso permanente destas, até três habilidades equipáveis simultaneamente, transparecem um estilo de RPG clássico de ação. Além disso, Outriders tem quatro classes, que também soam mais a exploradores de masmorras do que a atiradores, e são muito diferentes umas das outras.
Para além do nosso Trickster, que é um assassino rápido, estão disponíveis ainda o Pyromancer, como um feiticeiro de fogo a uma distância média, o massivo Devastator, como tanque de combate corpo a corpo, e o Technomancer, como suporte a longa distância.
A classe escolhida depende muito da preferência de cada jogador, e de uma forma geral, pareceu-nos que todas desbloqueiam habilidades poderosas o suficiente e aumentam ainda mais o seu poder a cada nível evoluído. Por exemplo, no caso da classe Trickster que escolhemos, a certa altura desbloqueamos uma espécie de pirueta com a lamina, que fez jorrar muito sangue com cada morte. Sim, Outriders pode ser um pouco brutal visualmente, mas talvez não mais do que outros títulos do mesmo género.
Velocidade para vencer
Um pouco ao estilo de Doom, em Outriders devemos continuar em movimento para sobreviver, e não existe cura automática ou ‘medipacks’. Temos de continuar a lutar para permanecer vivos, onde cada inimigo eliminado significa um pouco de regeneração de vida extra para o nosso personagem. Com este sistema, as batalhas rápidas de Outriders prosperam em emoção, e chega a ser possível recuperar alguma vida no último momento, apenas um décimo de segundo antes que o próximo golpe nos acerte.
Enquanto a vida desce rapidamente na chuva de balas, precisamos de controlar o impulso de simplesmente fugir. Em vez disso, e novamente tal como em Doom Eternal, a única coisa que ajuda é fugir para a frente, sempre no meio da luta, matar, disparar, e spammar habilidades, num passeio selvagem que não perdoa a hesitação. As armas de fogo do arsenal comum em jogos FPS, como metralhadoras, espingardas ou pistolas, são usadas nas fases intermedias, e todas têm uma boa sensação de jogabilidade, que embora não seja de todo realista, é muito divertida de experimentar.
Aqui é notória a experiência do estúdio com jogos de tiro, como Painkiller, Bulletstorm ou Gears of War, com um feedback de sucesso nítido. No entanto, existem alguns erros demasiado amadores para ignorar, principalmente no sistema de radar que parece incompleto, e no sistema de mira que nem sempre parece preciso.
Ainda assim, o fluxo especial de Outriders surge da sinergia do sistema de habilidades, tiro e género RPG, que até podia ter sido melhor aproveitado. Exemplo disso é o sistema de cobertura, que quase ignoramos por completo, uma vez que atacar, matar e curar é sempre a melhor estratégia. Outriders também desperdiça algum potencial nos diferentes tipos de oponentes. Sim, existem alienígenas que borrifam veneno, atiradores, ou gigantes blindados com miniguns. Mas isso não faz muita diferença na jogabilidade, e se formos rápidos o suficiente, a mesma fórmula funciona para qualquer oponente. Verdadeiras opções táticas nunca são necessárias, mesmo nas lutas esporádicas com bosses que às vezes até têm várias vidas. No final, ‘aguentar’ é sempre o suficiente e, na nossa opinião, Outriders podia ter sido um pouco mais do que isto.
Por vezes sozinho, mas sempre na rede
Outriders não oferece um mundo aberto, mas sim vários centros e áreas niveladas que são conectadas por pontos de viagem. Visitamos estes locais como parte da história principal, e podemos regressar a alguns deles para missões paralelas. Desde contratos de recompensa, contratos de assassínio ou aprender mais sobre o mundo do jogo e os seus habitantes, as opções são variadas, e até o podemos fazer com amigos.
Todas as missões podem ser concluídas em modo co-op. Um clique no menu é suficiente para que amigos, ou até desconhecidos, entrem a qualquer momento na nossa partida. Mas não se preocupem, a dificuldade também varia conforme o nível dos jogadores para não prejudicar aqueles de níveis menores. São permitidos um máximo de três jogadores por grupo, e é possível repetir a equipa para varias missões diferentes com um simples sistema de voto no final de cada operação, de forma a decidir em equipa qual o próximo objetivo.
Tivemos uma experiência de jogo agradável tanto sozinhos, quanto em co-op, mas se preferirem jogar a campanha sempre a solo, também é possível. Apenas temos de alterar a opção padrão no menu de ‘Jogo = aberto’ para ‘privado’, de modo a não ser automaticamente agrupado com outros jogadores. De referir também que todo este sistema é totalmente cross-play, de modo que podemos jogar com pessoas de qualquer outra plataforma, entre PC e consolas, por exemplo.
Visuais Bang-Bang
Em termos de design, não podíamos dar uma primeira impressão mais positiva. O planeta Enoch, a última esperança para o resto da humanidade dispersa, parece uma mistura do campo de batalha de Gears e Destiny. O estilo de protagonista fora-da-lei antipático, reforça ainda mais a atmosfera de western espacial. A história podia ser um pouco mais inspirada para suportar a experiência final, e reparamos em algumas texturas menos bem conseguidas, mas de um ponto de vista geral, Outriders não desilude na versão que testamos para a Xbox Series X. Esta nossa impressão pode e deve variar conforme a plataforma escolhida, uma vez que este jogo é compatível, para além do PC, com as consolas PlayStation e Xbox da nova e da anterior geração.
Dificuldade Adaptável
Uma vantagem em Outriders é que podemos tornar o jogo tão fácil quanto achemos necessário, sem que isso prejudique a nossa experiência ou a justiça do jogo. Não nos referimos apenas aos níveis típicos de dificuldade de fácil a difícil. Outriders usa um sistema de 15 ‘níveis mundiais’, sendo que quanto mais alto o nível do mundo, melhor é a recompensa, mas também mais fortes serão os inimigos. Este é um sistema que nos parece inteligente e justo, e que motiva os jogadores a esforçarem-se até ao limite.
Se quiserem apenas desfrutar da história, basta definir um nível baixo, e experimentar Outriders apenas como um simples jogo de tiro para um jogador. À medida que as recompensas para novos níveis mundiais são desbloqueadas, começam a surgir as armas lendárias ou o material necessário para melhorá-las, e isso vale muito mais do que as recompensas pelos chamados desafios, como matar um certo número de oponentes, que se limitam a emotes ou itens cosméticos. Mas mesmo para isso, teremos de merecer tudo o que Outriders oferece, porque não há loja no jogo e tudo tem de ser desbloqueado com esforço no campo de batalha. Pelo menos, até ao momento!
Tudo para o Loot
Não existem ‘lootboxes’, no completo sentido da expressão. Podemos comprar novos equipamentos e armas aos vendedores dentro do jogo, ou encontrá-los em caixas ou em corpos dos oponentes caídos durante as missões. No entanto, não é necessário mudar o guarda-roupa a cada minuto. Todas as armaduras e armas podem ser atualizadas, de uma maneira semelhante ao sistema usado em Assassin’s Creed Valhalla, ou alteradas usando mods para que suportem as novas habilidades escolhidas.
Se o nosso capacete favorito tem apenas o nível de raridade verde, podemos investir algum material extraído ou objetos e… pimba! De repente fica azul. E porque realmente gostamos muito dele, podemos incluir um mod que, por exemplo, permite que a habilidade de bolha de tempo carregue mais depressa. A liberdade neste aspeto é quase total, o único problema é a aparência do equipamento. Mesmo as peças raras parecem demasiado genéricas, e um cenário de ficção científica podia ter levado a soluções um pouco mais criativas.
Narrativa Possível
Menos bom de que algumas outras características é a historia principal de Outriders, e neste caso essa é uma característica especialmente importante num jogo que pode ser jogado a solo na sua totalidade. Não vamos referir grandes detalhes para além do que já falámos, mas podemos dizer que começa tão cliché e desinspirada como muitas outras, evolvendo o habitual coma (Skyrim, Fallout 4, Walking Dead), seguido de um despertar num mundo pós-apocalíptico.
Para além disso, Outriders tenta continuamente tocar-nos emocionalmente, e exemplo disso é uma missão onde ajudamos um idoso numa zona de guerra a voltar à sua velha cabana, apenas para ficar em frente a três túmulos. Ele não queria recuperar nada, nem nenhuma missão de vingança, apenas relembrar a sua mulher e filhos assassinados por colonos desesperados que lutavam por comida. Esta é uma temática um pouco pesada, embora encaixe no ambiente de guerra vivido.
Estes momentos são poucos e distantes entre si. Geralmente, Outriders empurra-nos para uma ação acelerada e frases saídas de um qualquer filme de ação. Neste mundo desolado, parece que todos os personagens querem ser um super-herói da banda desenhada, com um catálogo inteiro de frases feitas que tornam difícil levá-los a sério. Mesmo depois de mais de 10 horas de jogo, o enredo não ganha grande velocidade, porque estamos principalmente a viajar de um ponto para outro, e a conhecer novos personagens.
Em Outriders parece que tudo explode e mesmo assim não há destaques memoráveis. A monotonia de destruir vaga após vaga de inimigos instala-se cada vez mais. Os locais até se tornam mais impressionantes com o tempo, porque as favelas e ruínas lamacentas alternam com os desertos de gelo e as paisagens vulcânicas brilhantes. Mas Outriders nunca explora realmente o potencial dos mundos que nos apresenta, apesar de alguns bons encontros pontuais com alienígenas gigantes.
Talvez falte à People Can Fly alguma experiência nesta vertente de jogo, ou simplesmente tenha diminuído a importância deste elemento. Isto não deixa de ser um pouco irónico tendo em conta que este jogo foi publicado pela Square Enix, uma empresa que foi reconhecida durante anos pela criação de boas histórias (Final Fantasy, NieR Automata), mas que mais recentemente tem sofrido alguns problemas nessa vertente. De qualquer forma, sentimos que Outriders podia ter ido bem mais longe se tivesse um enredo e escrita de melhor qualidade.
Veredito
Outriders é mais divertido quando utilizamos as habilidades, explosões e as salvas de tiros, por vezes até em camara lenta, para derrotar os muitos e muitos inimigos que nos são apresentados. Mas ao contrário do que podíamos esperar, as armas nem são a estrela do jogo. As habilidades, mais características de um RPG puro, são o verdadeiro foco da jogabilidade, e temos mesmo de abusar delas para sobreviver, graças ao sistema de cura que depende inteiramente da velocidade com que eliminamos a concorrência. Além disso, existem possibilidades agradavelmente versáteis para o desenvolvimento de personagens, com as quais podemos criar a nossa configuração perfeita, e tudo isto num formato a solo ou em co-op.
Infelizmente, e depois destes elogios, temos de referir os problemas! Muito de Outriders não é apenas amador, como também estranhamente confuso. Isto inclui a bússola que falta no radar, os textos de tutoriais que não podem ser desligados, bem como os modelos de personagens semitransparentes ao usar certas roupas. Acima de tudo, inclui ainda uma dinâmica de luta que requer um bom movimento e timing, mas perde-se demasiado na repetição enfadonha da mesma tarefa. Não ajuda também que os adversários muitas vezes ajam de maneira irritante, e às vezes até incorreta, e que a própria mecânica de tiro pareça algo imprecisa.
Certamente que não é divertido ficar na mesma zona durante vários minutos a eliminar as mesmas ondas de oponentes, vezes e vezes sem conta, onde todas elas são demasiado semelhantes. Por mais impressionante que algumas áreas pareçam, Outriders acaba por não ter mais nada para oferecer para além da sua ação, e das secções em que procuramos mais caixas de loot.
A história é outro dos poucos fracos, e embora o desenho do personagem seja razoável, os diálogos são na sua maioria embaraçosos. E nem vamos referir de novo os problemas inicias de conexão aos servidores. Outriders acaba por ser uma deceção. Num jogo que inicialmente parecia muito interessante, descobrimos um resultado demasiado imaturo para atingir outros patamares de qualidade, mas que é ainda assim divertido, pelo menos enquanto acharmos original e diferente a sua mecânica de jogo, muito baseada na mistura de um FPS tradicional com um modelo de RPG clássico. Outriders parece um jogo incompleto mas cheio de potencial.
[Análise baseada na versão de Outriders para a Xbox Series X, gentilmente cedida pela playandgame.pt]