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O jogo começa e depressa avançamos pelo mapa, até encontrarmos um inimigo que nos elimina. Renascemos e repetimos o processo, agora mais preparados, até sermos novamente eliminados por um inimigo ainda mais forte, e voltamos a renascer. Se esta jogabilidade parece comum em qualquer jogo FPS, a verdade é que Deathloop apresenta-nos o mesmo conceito mas de uma forma ligeiramente diferente.

Na pele de Colt, vivemos um loop dentro do mesmo dia, consequência de uma sofisticada experiência militar. Se à partida parece divertido podermos viver o mesmo dia todos os dias, o nosso herói não pensa assim e quer colocar um fim ao ciclo repetitivo, mesmo que para isso tenha ele próprio de morrer e renascer, vezes e vezes sem conta.

Embora interessante à partida, a aposta numa jogabilidade diferente também pode ser arriscada. Depois de fazer a série Dishonored, o estúdio francês da Arkane Studios percebeu que podia colocar a fasquia ainda mais alta, e isso talvez tenha compensado! Para compreender melhor Deathloop fomos mais longe do que o habitual, e até tivemos de renascer múltiplas vezes para explorar a ilha de Blackreef e este FPS com fortes inspirações Sci-Fi.

Análise Deathloop

Quando acordamos meio atordoados numa das praias de Blackreef, percebemos que o nosso herói vive atormentado por alucinações, no mínimo… originais. Colt vê frases que pairam pelo ar como se um espirito maligno brincasse com o livro aberto que é a sua vida. Parece profundo? De facto é! Colt sofre de amnesia, e cada vez que morre, renasce novamente na mesma praia, apenas com mais um pequeno pedaço das suas memorias, até perceber o impensável. Nesta ilha, o dia repete-se indefinidamente, e quer ele morra ou espere pela noite, Colt está condenado a acordar de novo em frente ao mar.

Tudo muda quando conhece Julianna, um personagem que o ‘ajuda’ a colocar alguma ordem nas suas ideias, e também a fazer evoluir a trama do jogo. Se Colt quiser abandonar este inferno, terá de matar os oito psicopatas que governam a ilha, chamados de “Visionaries” (ou Visionários), mas nem todos concordam com este plano. Por este motivo, Deathloop é também a história de dois protagonistas com interesses divergentes. Colt, o personagem principal, quer quebrar este ciclo infinito de repetições, enquanto a antagonista Julianna, faz tudo para protegê-lo.

Várias Formas de Jogo

O caminho marcado das primeiras rondas, rapidamente dá lugar a um mundo semiaberto cheio de segredos para serem descobertos. Caçado como uma presa indefesa no início do jogo, Colt deve aprender a andar furtivamente para sobreviver. Graças ao seu Hackamajig, ele pode hackear todo o tipo de objetos com antenas, como sensores de movimento e torres. Além disso, ele tem a capacidade de se mover silenciosamente enquanto anda agachado, e assim pode eliminar os seus oponentes pelas costas, uma mecânica bem conhecida pelos fãs de jogos furtivos, e também de alguns dos títulos mais populares da Bethesda, a editora de Deathloop.

Como um verdadeiro caçador, Colt tem a habilidade de marcar os seus inimigos, um skill que revela a sua posição (mesmo através de obstáculos) e mostra a arma com que estes estão equipados. Ao fazer loops e explorar áreas seguindo o indicador de missão, colecionamos várias pistas que servem tanto como marcadores de objetivos, como para guardar informações para um próximo loop, ou mesmo para ativar em outros momentos.

Para além disto, Deathloop não tem um ciclo clássico de dia e noite. Na verdade, o dia está dividido em quatro momentos-chave: manhã, meio-dia, tarde e noite. A única maneira de passar de um período para outro é mudar de distrito ou passar o tempo rapidamente no ecrã de escolha de missão. Isto significa que temos muito tempo para explorar cada área de alto a baixo, e apenas uma mudança de setor muda a posição do sol. Esta é uma regra nada natural que deve ser aprendida para melhor compreender o universo deste jogo, mas é também uma lufada de ar fresco para o habitual ciclo infinito de dia-noite, ou o mais monótono ainda… ‘dia infinito’.

Um Mapa Diferente

A Ilha Blackreef é dividida em quatro áreas a serem visitadas: The Complex, Updaam, Karl’s Bay e Fristad’s Rock. Todas elas são conectadas por uma rede subterrânea, e cada um destes distritos abriga Visionários em diferentes momentos do dia: Charlie Montague, o criativo; Fia Zborowska, o artista; Harriet Morse, o treinador de desenvolvimento pessoal; Egor Serling, o explorador; Frank Spicer, o músico; Aleksis Dorsey, o arruaceiro; Wenjie Evans, o cientista; e Julianna Blake, a antagonista.

Cada momento do dia tem os seus próprios desafios e eventos-chave. Por exemplo, algumas áreas abrem apenas à tarde, enquanto existem personagens que só podem ser encontrados à noite. A principal missão é, portanto, matar todos os Visionários presentes em Blackreef, e isto durante o mesmo loop. O problema é que a missão é teoricamente impossível devido aos protocolos de segurança em vigor, e ao facto de vários Bosses estarem à mesma hora em dois distritos diferentes. É aqui que as pistas recolhidas durante a aventura revelam a sua utilidade, e que, por sua vez, o design de jogo e mapa mais brilham.

Por meio de pesquisas, Colt descobre maneiras de contornar os problemas normalmente bloqueadores (que não vamos revelar por razões óbvias). A Arkane planeou tudo para facilitar a vida do jogador, até talvez demasiado, dando a possibilidade de aparecer no distrito que se quiser à hora que der mais jeito. O estúdio também implementou menus limpos, nítidos e precisos, dando ao utilizador toda a eficiência necessária para melhorar as suas armas, bem como as habilidades especiais. A guia “track” mostra todos os objetivos atuais de acordo com a hora do dia, o que é útil para planear um cronograma mais eficaz antes de iniciar um novo loop.

Regresso à Vida

Apesar do que pode parecer ao inicio, a morte não significa um retorno automático à estaca zero, já que Colt na verdade tem três vidas antes de morrer permanentemente. No caso de uma morte improvisada, um retrocesso no tempo é realizado até à contagem de vidas chegar a zero. Este processo é bem-vindo por duas razões. O primeiro é reduzir a frustração ligada ao lado ‘rogue-lite’, já que três erros ao invés de um, enviam o nosso herói de volta ao inicio. A segunda é permitir ao jogador a possibilidade de experimentar muitas opções de ação sem ter receio de morrer.

Alguns jogadores vão querer usar uma dessas vidas bónus para desarmar armadilhas em modo kamikaze, enquanto outros podem tentar passar por saliências para encontrar um atalho. A boa notícia é que este contador de ressurreição pode ser recuperado várias vezes ao longo do jogo, e como a mecânica não é só uma brincadeira pontual, deve ser dominada para realmente perceber o jogo.

Os Visionários estão equipados com módulos que concedem habilidades sobrenaturais que podem ser roubados. Estes protagonistas não são muito mais resistentes do que NPCs normais, e apenas as suas habilidades especiais os tornam mais perigosos do que a média. Dentro da fantasia ainda existe algum realismo, uma vez que esta opção retira a banalidade do típico boss com 50 barras de vida.

Quando o dia termina, ou quando o jogador depara-se com alguém mais forte do que ele, Colt inicia um novo loop. Ele então perde todo o equipamento adquirido durante as suas viagens, no entanto, assim que a arte do residuum for dominada, novos horizontes abrem-se para ele, e para nós. Ao gastar este recurso que se acumula através da morte de Visionários, ou por meio de certos elementos do cenário, temos o poder de ‘guardar’ vários elementos de um loop para outro, sejam eles armas, amuletos ou mesmo módulos. Conforme o nosso herói avança nos caminhos de Loop Liberation, ele aprende mais sobre o seu passado, bem como o de outros protagonistas.

Inicialmente perdido na imensidão de um Blackreef recheado de psicopatas, Colt rapidamente torna-se ele próprio numa máquina de guerra, capaz de se teletransportar e enviar os seus oponentes pelo ar. Esta emocionante ascensão no poder torna possível completar o loop final sem muita dificuldade, num festival de ação muito mais atrevido do que poderíamos esperar.

Se pensarmos que tínhamos de caminhar junto às paredes, e ter o cuidado de hackear os detetores da ilha para evitar rebentar em mil pedaços… tudo isto deixa de ser necessário na segunda metade da história!

Refrescar o Banal

Mesmo que as primeiras três horas de jogo sejam um grande tutorial que ensina todas as regras que governam o seu universo, Deathloop faz todos os possíveis para não perder jogadores pelo caminho. Ao contrário da grande maioria dos outros personagens, Colt sabe que o dia está sempre a repetir-se. Portanto, ele tem em mente todos os elementos que facilitam o progresso.

Embora faça tudo para sugerir o contrário, Deathloop ainda tem uma estrutura bastante clássica. Colt tem um objetivo, destruir os Visionários, e esse objetivo irá evoluir à medida que ele conclui com sucesso as missões propostas. Aos poucos, o quebra-cabeças é resolvido e a saída perfeita desse inferno toma forma. Assim que todas as missões forem concluídas no guia “pistas”, o objetivo final é exibido. Isto significa que não cabe ao jogador tentar encontrar a solução ideal, basta deixar o jogo indicar o caminho final e seguir todos os objetivos principais.

Isto não é de todo ideal, e quase parece que o estúdio pensou que seria demasiado difícil deixar que os jogadores descobrissem sozinhos as soluções. Apenas três missões requerem a análise de elementos específicos (fotos, textos, notas) sem que o jogador seja apoiado para um resultado sempre bem-sucedido. Em geral, tudo está bem entrelaçado para que nunca nos sintamos perdidos, mas também nunca verdadeiramente desafiados.

Arte e Tecnologia

Se a direção artística é muito boa, com uma inspiração óbvia nos anos 60/70, que pode ser ouvida também na excelente banda sonora, a parte técnica pura é um pouco menos espetacular.

Na PlayStation 5, não deixa de parecer que estamos a jogar um título da PS4 que foi potenciado pelo novo hardware, independente do modo visual selecionado nas opções. Dito isto, o design de mapa feito pela Arkane está mais uma vez a um nível impressionante. Os níveis oferecem sempre vários caminhos para atingir os objetivos, já para não falar na mecânica base de todo o jogo (que já explicamos acima), original o suficiente para nos entreter só por si.

Ao contrário de outras produções do estúdio, onde a ação bruta raramente é encorajada, deixar as armas falarem é muitas vezes a melhor linguagem neste loop temporal, especialmente quando o final está próximo. Apresentado como um ‘Dishonored com armas de fogo’, Deathloop faz questão de tornar as suas lutas interessantes. Colt pode inicialmente carregar até três armas, numa larga seleção de armamento diferente. A escolha é grande o suficiente para adequar-se a diferentes estilos de jogo, enquanto as habilidades dão uma vantagem efetiva a quem as utiliza com critério.

Quanto mais perto chegamos do desfecho, mais poderosos são os itens que os inimigos largam, mas infelizmente a inteligência artificial tem dificuldade em gerir todas as possibilidades oferecidas ao jogador. Não é incomum ver um NPC ignorar quando um dos seus camaradas cai morto aos seus pés, ou contemplar um inimigo entalado a correr contra uma parede até que a morte o liberte desta má programação.

Vislumbre Multijogador

Talvez para contrabalançar o comportamento superficial dos oponentes controlados pela máquina, a Arkane incorporou uma componente multijogador PvP dentro da sua própria experiência, para um único jogador. Durante o jogo, os jogadores podem encontrar uma Julianna controlada por outro jogador real. Offline, é sempre uma Julianna NPC que vai incomodar o jogador, e escusado será dizer que nesta configuração o confronto é muito mais simples.

Conclusão

Com um conceito tão original quanto corajoso, Deathloop acabou por ser um grande risco para a Arkane Studios, e neste caso ficamos felizes que tenha sido bem-sucedido. Afinal de contas, Deathloop não contém apenas a liberdade de jogar um FPS com uma grande ação furtiva, mas também uma história complexa que acontece continuamente e ainda pode ser alterada. É notável que nunca percamos o fio condutor, e que nos seja apresentada uma estrutura de missão familiar com conexões interessantes.

Apesar disso, gostávamos que o estúdio tivesse esperado que os jogadores fizessem um pouco mais de trabalho de detetive, em vez de direcioná-los sempre para a mudança decisiva e óbvia, mas para além do enredo central, existem alguns segredos escondidos por detrás de quebra-cabeças interessantes.

Mesmo como um shooter tradicional, Deathloop pode ser brutal, e é por isso que é tão agradável vencer os inimigos silenciosamente para contrabalançar as formas mais barulhentas. Também é muito divertido experimentar as diferentes habilidades e armas, e se não fossem as pequenas discrepâncias e erros no comportamento da IA, e uns controlos às vezes menos precisos, estaríamos perante algo épico!

Temos de referir ainda o pequeno modo online, que embora seja algo momentâneo, é um cenário interessante que pode dar um pouco mais de longevidade a um jogo quase totalmente single-player.

Deathloop é um FPS que é tão interessante quanto maluco, mas no bom sentido. Mais voltado para a ação do que um Dishonored, o título publicado pela Bethesda atinge rapidamente um nível alto de profundidade, mas também de rara complexidade, mesmo para uma obra da Arkane. Pautado pela sua originalidade, e mesmo com os pequenos erros e ausências, Deathloop é uma experiencia a não perder para qualquer fã do género FPS.

[Análise baseada na versão de Deathloop para a PlayStation 5, gentilmente cedida pela playandgame.pt]