Estamos em 1348, durante o pico da Peste Negra, a maior praga que assolou o continente europeu, um surto tão devastador que ofuscou até os horrores da lendária Guerra dos Cem Anos. Nesta aventura, encarnamos a personagem de Amicia, filha de um nobre francês que, com o seu irmão Hugo, foge dos soldados ingleses, da mortífera Peste Negra e da temível Inquisição.
Desenvolvido pela Asobo Studio, e publicado pela Focus Home Interactive, A Plague Tale: Innocence é um jogo de ação e aventura, com muitos elementos de furtividade e uma história pouco vista para o seu género. Amicia, a protagonista desta aventura, é uma adolescente, com uma vida aparentemente facilitada, graças aos luxos da nobreza. O seu irmão Hugo é ainda mais novo, e juntos irão viver a aventura das suas vidas, onde as lutas corpo a corpo são algo a evitar a todo o custo, os ambientes são sombrios e os perigos mais que muitos.
Esta aparente ausência de ação, ligada à profundidade dos temas abordados, costumam ser difíceis de combinar e de fazer agradar a uma vasta gama de jogadores. Será que este jogo de época pode ser um marco para o estilo furtivo? Ou será apenas mais uma tentativa de inovar, num género que não tem assim tantas referências de peso? Só nos resta enfrentar este mundo sombrio para o descobrir.
A Plague Tale: Innocence
O desastre surgiu do nada nesta família nobre e privilegiada. Até há pouco tempo Amicia estava numa floresta, à caça com o pai, e praticava com a sua fisga de forma despreocupada. Mas tudo muda de forma repentina, um autêntico inferno instala-se na Europa, a Inquisição ataca o Solar onde habitam, de forma a capturar o seu irmão, e no meio da chacina, apenas os dois escapam.
Desde aí várias perguntas dão combustível à narrativa: O que pretende a Inquisição de Hugo? Porque razão tem dores de cabeça? E o que está por trás desta praga de ratos que supera até mesmo os horrores da Guerra dos Cem Anos? Felizmente, o diretor foi capaz de unir os vários elementos fictícios mantendo alguma credibilidade histórica, algo nem sempre fácil de alcançar, mas valoriza muito um jogo de época como A Plague Tale: Innocence.
Vivemos tempos conturbados, a morte está ao virar de cada esquina e os ratos multiplicam-se por toda a parte. Uma inundação de corpos castanhos guincha ruidosamente, enquanto correm por todo o lado, aproximando-se perigosamente das pessoas. A certa altura, a nossa protagonista Amicia procura ajuda junto do padre da aldeia. Os túneis da igreja podiam ser uma forma de escapar aos aldeões que os querem entregar à Inquisição, mas mal podiam adivinhar o perigo que os esperava. Com uma tocha numa mão, e o irmão Hugo na outra, apenas a luz impede que os dois jovens sejam atacados pelo mar de ratazanas que se aglomeram à sua volta. Forçados a avançar lentamente, têm de procurar os pequenos pontos iluminados, para continuarem o seu caminho.
Amicia consegue criar fontes de luz, exemplo disso são as tochas, mas elas só ardem por um curto período de tempo, por isso precisamos de encontrar rapidamente outras alternativas, como candeeiros a carvão, que fornecem uma fonte de luz permanente.
Rapidamente desbloqueamos novas habilidades que permitem, por exemplo, que Amicia lance projeteis em chamas, que incendeiam vagões e possíveis armadilhas à distancia. Para utilizar de forma correta estas vantagens somos obrigados a explorar o terreno e a procurar soluções. Mais tarde podemos até utilizar explosivos, que lançamos diretamente contra grupos de inimigos.
O perigo é constante, e apenas um passo em falso pode representar a morte certa. Isto significa que por vezes os nossos heróis são forçados a correr, mesmo deixando de lado qualquer furtividade ou estratégia, e isso leva a situações excitantes em que a ação e o estilo quebra-cabeça se complementam de uma forma divertida.
Uma Boa Fisgada
Mesmo que Amicia tenha que dominar algumas habilidades especiais de duelo, ela não tem qualquer hipótese no combate corpo a corpo, algo que seria expectável. Para podermos lutar à distância, a fisga desempenha um papel importante em todo o processo. Com ela, Amicia pode fazer bem mais do que lutar, como por exemplo abrir caminhos, ou partir caixas no chão, que pode mover e usar para escalar obstáculos, ou ativar pequenas armadilhas que desorientam os roedores. Também podemos atingir a cabeça de adversários humanos à distancia, eliminando os guardas que por vezes se atravessam no seu caminho.
Alguns dos soldados estão protegidos com capacetes, e nestas situações podemos até transformar os ratos em armas que atuam a nosso favor. Quando um guarda com uma tocha passa por eles, podemos destruir a sua fonte de luz, transformando-o em alimento para as pequenas criaturas. O pó químico é uma alternativa que faz atordoar os adversários, desde que para isso Amicia tenha recolhido os ingredientes necessários ao longo do seu percurso.
A elaboração e utilização dos utensílios é bastante subtil, especialmente porque até os efeitos de melhoria permanentes são apenas ligeiramente percetíveis, mas isso não é algo necessariamente mau. Ao longo do caminho encontramos vários objetos, como couro, tecidos, sal e óleos, que podemos usar para criar substâncias inflamáveis, malas, roupas, e de tudo um pouco, que possa tornar Amicia mais rápida e furtiva. Embora possamos melhorar desta forma as suas habilidades, e até o poder da fisga, não existem níveis evolutivos ou pontos de habilidade como num RPG clássico e, sendo assim, temos de tentar perceber por nós próprios a força e habilidade de Amicia, e se esta é capaz de enfrentar um determinado inimigo. Este conceito aproxima a realidade do jogo à vida real, onde também não existem escalas de evolução.
Apesar de conter áreas bastante limitadas, A Plague Tale: Innocence recompensa o jogador por procurar objetos nos corredores. Além dos típicos objetos de crafting e artefactos, podemos encontrar também pequenos arquivos históricos, com informações sobre a época onde se passa o jogo, um detalhe interessante e que pode até ser educativo para alguns jogadores.
Retirada Estratégica
A Plague Tale: Innocence está repleto de pequenos puzzles e quebra-cabeças para resolver, que neste caso complementam alguma teórica falta de acção. Embora muitas das soluções para os puzzles sejam um pouco óbvias e lineares, são mais que compensadas pelas táticas de luta e o ‘stealth’ que temos de utilizar no decorrer do jogo. Quando somos forçados a fugir, é importante combinarmos as habilidades dos dois personagens para ultrapassar obstáculos. Amicia pode chamar o seu irmão através de pequenas frinchas nas paredes, e mais tarde será necessária a união dos dois personagens para abrir passagens e mover portões.
A camuflagem e a distração são utilizadas com frequência. Se simplesmente corrermos em frente, seremos rapidamente descobertos, e por isso temos de nos manter agachados, enquanto atiramos pedras e ativamos armadilhas para distrair os soldados. Uma vez confusos, podemos ultrapassá-los pela retaguarda, enquanto desaparecemos de novo por entre a vegetação. A I.A., embora não seja perfeita, é sólida o suficiente para fazer deste jogo de ‘caça do gato e do rato’ desafiador e divertido.
Foco na Narrativa
Nem todos os jogos dependem da história para serem populares ou divertidos, mas este não é o caso de A Plague Tale: Innocence. Aqui, a narrativa e a representação de alguns factos reais, não só servem de suporte para o tipo de jogabilidade, como servem também de justificação para avançar no jogo.
Toda a história é encenada em 17 capítulos, surpreendentemente vivos e narrados de uma forma interessante. Isto não se aplica só às animações dos irmãos enquanto se ajudam mutuamente, mas acima de tudo, à comunicação que têm entre si, onde podemos sentir os seus conflitos, medos e afetos. A irmã mais velha, de repente tem de provar a si mesma que é capaz de proteger o seu irmão, que viveu até agora sob os cuidados da sua mãe e entra em pânico quando percebe que está sozinho.
Especialmente nas fases de separação, o nível de adrenalina aumenta significativamente, o que cria situações engraçadas e ao mesmo tempo tristes, onde somos levados a simpatizar com os personagens. Os diálogos são naturais, de tal forma que tornam mais fácil a identificação com os irmãos.
A Beleza dos Horrores
Como é fácil perceber, a história e os ambientes de A Plague Tale: Innocence não são propriamente agradáveis, nem faria sentido que fossem. Estamos perante uma das eras mais sombrias da história mundial, onde milhares de pessoas perderam a vida. E isso foi um acontecimento demasiado real para diminuir com piadas ou ambientes coloridos. Tudo é escuro, as expressões e os sentimentos são fortes, e a morte espreita ao virar da esquina, tal como os ratos.
No entanto, é ainda possível apreciar os cenários e ambientes que este jogo nos oferece. Seja pela impressionante banda sonora de Olivier Derivière, compositor com participações em jogos como Vampyr e Assassin’s Creed IV: Black Flag, ou pelos cenários limpos e variados que foram projetados, A Plague Tale: Innocence é certamente uma experiência ao nível cinematográfico.
Florestas, aquedutos, grutas, aldeias, túneis e até castelos, a diversidade de ambientes é muita, e inclui grandes efeitos de iluminação. Foi comum pararmos a meio do jogo apenas para girar a câmera e apreciar o que nos rodeia. Também o desenho dos personagens merece louvores. As expressões faciais são boas, as roupas muito bem texturizadas e até as peças individuais como cintos, bolsas ou cordões podem ser vistos em movimento durante a ação.
O novo motor de jogo, que fez a sua estreia em A Plague Tale: Innocence, deixa uma excelente impressão, e retirando alguns pequenos erros nas arestas e na repetição de alguns inimigos, a Asobo Studio fez um trabalho muito competente na sua utilização.
VEREDITO
Nem sempre podemos julgar um livro pela capa, e A Plague Tale: Innocence é um exemplo perfeito deste ditado popular. Uma aventura furtiva, ambientada no final da Idade Média, em que, ao contrário do que seria mais óbvio, não somos nenhuma espécie de cavaleiro mercenário, já por si é uma surpresa. Se juntarmos elementos de fantasia, estratégia e puzzles, a uma aventura impressionante e perigosa, na pele de dois frágeis irmãos, que fogem da Inquisição durante a Peste Negra, estaríamos a elevar a fasquia da originalidade ainda mais longe.
A Plague Tale: Innocence foi uma verdadeira surpresa e uma lufada de ar fresco na indústria, por vezes sobrecarregada de jogos demasiado semelhantes. A combinação de temas encaixa na perfeição, os ambientes e cenários apresentam um alto nível de detalhe, as personagens estão bem trabalhadas tanto na construção narrativa como do ponto de vista visual, e a banda sonora é também muito boa. Encontrámos neste jogo algumas semelhanças a Shadow of the Tomb Raider, onde o trabalho visual e a construção das personagens, tal como o inovador sistema de luta, foi também muito apreciado por nós. Obviamente que A Plague Tale: Innocence pode não ser um jogo para todo o tipo de jogadores, uma vez que nos faz evitar o conflito o mais possível, mas mais que compensa essa aparente limitação com a inclusão de furtividade, estratégia e enigmas.
Durante a história, há sempre situações empolgantes em que a ação e o estilo de enigmas complementam-se de uma forma divertida. Embora sejam um pouco lineares, os puzzles acrescentam profundidade à jogabilidade, e a I.A. é boa o suficiente para criar um desafio. A Plague Tale: Innocence mostra uma grande maturidade da Asobo Studio. O estúdio conseguiu unir temas complicados, criando uma aventura divertida e profunda, e tudo isto sem necessitar de forçar demasiada ação ou qualquer tipo de ‘Fan Service’. Com fortes elementos de furtividade, personagens bem construídas, importantes ligações históricas na narrativa e visuais arrebatadores, A Plague Tale: Innocence conseguiu inovar e alcançar um lugar de destaque no seu género.
Para além de todas as qualidades que facilmente fazem esquecer alguns pontos menos bons, o nosso elogio reflete também o risco do estúdio no desenvolvimento de um jogo de época, com um tema difícil e por vezes até evitado socialmente, ao mesmo tempo que promove um novo estilo de ação, sem excessos de violência, algo tão comum nos jogos dos dias de hoje.