Um dia os cinemas vão deixar de ter uma plateia preguiçosa que assiste passivamente ao desenrolar de uma história no grande ecrã. Os filmes deixarão de ser histórias produzidas massivamente, todas iguais e indiferentes à reação dos espectadores. A indústria terá de evoluir, adaptar-se aos novos tempos, ao crescente desenvolvimento da tecnologia e, principalmente, a maior e mais refinada exigência dos consumidores. Talvez tudo isto seja apenas uma utopia, e daqui a 100 anos os críticos de cinema ainda analisem um filme conforme aquilo que ele é, um conto de uma história.
Erica surge como uma demonstração de que um filme não tem de ser apenas um conto de uma história. Pode ser muito mais do que isso. Aqui, deixamos de ser um espectador inerte de algo que se desenrola em frente dos nossos olhos e transporta-nos para o centro da ação. Faz-nos palpitar a cada acontecimento. Um novo capitulo não é só uma nova aventura, é o nosso destino, um desenrolar de escolhas que fazemos e que traduzem a nossa personalidade. Podíamos até ir mais longe e dizer que este género de contar histórias pode definir quem somos, como nos envolvemos com o mundo e com os outros. Erica faz tudo isto. Oferece-nos uma nova forma de viver uma história, de descobrir o capitulo seguinte, e de nos conhecermos um pouco melhor.
Mas será Erica o primeiro passo para o nascimento de um novo género na indústria da sétima arte? Não é novidade que os videojogos já procurem levar o jogador ao papel principal de uma narrativa típica de um filme, com densos enredos, reviravoltas na história, suspense, mistério, tríler. É o caso de exemplos como Detroit Become Human ou Life Is Strange, que, apesar de fazerem um brilhante papel na contagem de uma história, e permitirem ao jogador escolher como querem que essa história seja contada, ainda estão aquém do género que Erica tenta descobrir.
Erica
Pela primeira vez anunciado em 2017, durante a Paris Games Week, Erica reapareceu em plena cerimonia de abertura da Gamescom 2019 para surpreender todos os visitantes da feira e milhares de espectadores que assistiam pela Internet. Mas será este um jogo ou algo mais? Se definirmos um jogo como algo que desafia o jogador na descoberta de uma solução para um problema, de uma forma divertida, com outros jogadores ou sozinho, então Erica é mais do que tudo aquilo que conhecemos. Apesar do conceito não ser inteiramente novo, há muitos exemplos de videojogos e até livros que contam histórias com o jogador no papel principal, dando-lhes a liberdade de escolher o rumo dos acontecimentos (quem não se lembra das antigas Aventuras Fantásticas onde o leitor tomava decisões que mudavam o rumo da sua própria aventura), Erica renova o conceito e imprime uma nova motivação numa forma de contar histórias ainda muito pouco explorada.
O jogo, ou filme, interativo da Flavourworks, destaca-se logo desde o começo. Sem transições ou adaptações de modelos, todo o conteúdo visual é real. Dos ambientes aos objetos com os quais podemos interagir, os intervenientes na história, tudo aquilo que vemos foi filmado para nos proporcionar uma experiência realista.
Erica faz parte da oferta Playlink, e como tal faz uso do touchpad do comando DualShock 4, ou do ecrã de um smartphone iOS ou Android, para controlar as opções de dialogo e interagir com o ambiente. A jogabilidade é fácil e bem descrita, pelo que não tivemos qualquer problema em avançar rapidamente pela história. Ainda assim, sugerimos a utilização do smartphone, que em comparação com o frenético e minúsculo cursor do touchpad, oferece-nos uma maior facilidade no controlo das opções que queremos tomar no ecrã.
Quando comparado com o trailer de revelação de 2017, reparamos em alguns aspetos curiosos que se distinguem da versão final de Erica. Agora, com uma nova protagonista, o ambiente e cores parecem um pouco menos sombrios, embora o estilo de escolhas e jogabilidade básica pareçam manter-se. Estas alterações podem ter sido pensadas para atrair um público mais alargado, que não seja especialmente fã de ambientes mais negros, mas ficamos curiosos por descobrir onde teria chegado a aventura inicial.
Um Assassínio por Resolver
A história é interessante, complexa e não revela todos os segredos numa única vez. Erica encontra o pai morto, e embora o assassino esteja mesmo à sua frente, ela não o consegue identificar. O caso parece perdido, mas um misterioso pacote deixa tudo em aberto. Para conhecer todos os detalhes sobre os acontecimentos, somos obrigados a jogar várias vezes, o que pode ser uma grande motivação extra para repetir a experiência. Infelizmente, esta característica também lhe confere um problema, a história parece algo curta, incompleta e termina de uma forma um pouco apressada.
A fluidez e a facilidade na jogabilidade ajudam a sentir-nos totalmente imersos na pele da heroína, interpretada pela atriz britânica Holly Earl. Ainda assim, a multiplicação de fases supérfluas não dá a impressão de diversão, mas sim de sofrimento. Aliado a isto, a ausência de pontos de gravação intermédia, ou um menu que nos permita repetir a história a partir de uma secção, algo comum em jogos de estilo “visual novel”, um género a que Erica poderá assemelhar-se, tornam a experiência ainda mais repetitiva. Tendo em conta que qualquer resposta diferente pode mudar a história, será justo sermos obrigados a repetir 2 horas de jogo para descobrir todos os finais? Se reconhecermos Erica como um filme, será aceitável reviver parte da história até chegarmos ao ponto de decisão da experiência que agora queremos alterar. Quando gostamos de um filme tradicional, não nos vamos importar de o rever na totalidade, mesmo sabendo que a história não muda, logo Erica dá-nos essa opção com uma enorme vantagem.
Decisões Interativas
Além da escolha das respostas, por vezes um pouco óbvias, as outras opções limitam-se à utilização de um objeto ao qual somos obrigados a interagir. Esta limitação torna a experiência um pouco pobre, o que poderá desmotivar o participante. Não podemos desviar-nos do enredo, mesmo que este permita vários caminhos diferentes. Ficamos com a sensação de que as nossas escolhas levam-nos irremediavelmente a percursos pré-definidos, sem grande margem para a criatividade. A adição de alguns enigmas ou quebra-cabeças que estimulassem o intelecto, podiam evitar o tédio da repetição de escolhas, e não seriam estranhos à experiência.
Podemos perceber que a ideia foi, acima de tudo, seguir uma história ou enredo intrigante na sua forma mais pura, e sem demasiados artifícios, mas isso pode não ser o suficiente para entreter todo o tipo de jogadores.
Em geral, as decisões são bastante numerosas, e muitas das respostas não revelam exatamente o que Erica dirá depois, de modo que em alguns momentos temos de seguir o nosso instinto e descobrir como a história se vai desenrolar de seguida. Já a interação com o ambiente parece muito menos interativa ou pelo menos tecnicamente impressionante do que provavelmente foi planeado.
Um exemplo é a interação com os objetos, que é feita geralmente através de imagens estáticas, e não durante cenas corridas de vídeo. Mas mesmo nos melhores momentos, apenas os objetos relevantes para o enredo são interativos. Nunca examinamos uma sala com objetos opcionais, que acrescentassem algum detalhe interessante, ou apenas desviassem a nossa atenção.
Silêncio dos Inocentes
Não menos importante seria a necessidade de algum trabalho extra na direção. O completo silencio na maioria das cenas e alguma rigidez nas atuações dos atores, tornam a experiência algo fria. Os diálogos parecem colados de seguimentos individuais, com a empatia de alguém que fala sozinho para o vazio. A isto juntamos a rapidez das secções, que não permitem a construção das relações entre os personagens, e neste ponto as transições entre cenas seriam bem-vindas.
Na maioria dos casos, nem sequer é explicado porque mudamos de local, ou a informação é apenas sussurrada de forma pouco percetível. Também não existem planos do exterior ou outros meios cinematográficos para guiar os espectadores de um local para o outro. Até mesmo a banda sonora de Austin Wintory tem dificuldade em entrar no jogo, uma vez que é geralmente apenas ouvida no fundo e em som baixo. Ficámos com a impressão que Erica tinha muito potencial que não foi completamente aproveitado.
VEREDITO
Um tríler de mistério bem escrito, com decisões pertinentes, pode ser a base para uma noite de cinema bem passada. Na realidade, Erica podia ser ainda mais do que isso. A historia misteriosa cumpre com o propósito, e a forma como interagimos com o ambiente também foi bem conseguida. Utilizar o comando de forma tátil, ou o smartphone, distancia-nos do típico controlo por botões, o que por si só é algo irreverente. No entanto, estes fatores não serão o suficiente para dizermos que Erica é uma obra prima. A Flavourworks não conseguiu criar personagens, mas sim apenas emoções superficiais espelhadas no ecrã. Os relacionamentos são fracos e frios, porque os intervenientes da história raramente interagem entre si. Provavelmente devido a uma direção fraca, ou a uma produção apressada, Erica parece uma manta de retalhos onde cada pedaço representa uma cena onde temos de tomar uma decisão, sem qualquer relação na construção da história e até os elementos que podemos interagir são muito limitados, na quantidade e na forma como os utilizamos.
Embora seja interessante ver como as nossas decisões influenciam o curso da história, a grande aposta neste novo estilo de filme/jogo interativo parece-nos ser o género diferenciador de como vivemos a experiência. Quando lemos um livro, transportamo-nos para o universo da sua história, fazemos parte do enredo, vivemos a aventura como se fosse nossa. Erica tenta fazer o mesmo. Leva-nos ao interior da ação, como parte integrante do elenco. Somos heróis, vilões e personagens secundárias. Somos a história, as decisões e as consequências. Erica não é só um jogo, nem só um filme, é uma experiência interativa que pode inspirar ao surgimento de um novo género mais realista e menos digital.